Analisando João 6.44

Um e-mail e minha resposta:

Olá, Sr. Adams, 

Li com interesse seus comentários sobre os comentários de Calvino sobre João 3.16 em seu site. Fiquei imaginando quais seriam suas considerações sobre as palavras de Jesus registradas em João 6.44:Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou o não trouxer; e eu o ressuscitarei no último dia.

(Infelizmente as edições inglesas tendem a traduzir o grego como “trouxer” antes que mais precisamente “compelir” – especialmente visto que ela é também traduzida mais precisamente como “arrastado” em outro lugar.)

Você já parou para pensar que talvez o “por outro lado” de Calvino tinha a intenção de reconhecer o que a totalidade da Escritura diz sobre esta questão?

Ele apenas pode estar apelando para a teologia que é fundamentada na própria Escritura.

Minha resposta…

Em primeiro lugar, gostaria de chamar a atenção para o fato que meu correspondente está tentando jogar uma escritura contra outra. Assim, o que estamos fazendo aqui é jogando passagens da Escritura em oposição. Visto que o significado de Jo 6.44 parece intimamente ligada ao seu contexto, usá-la para rechaçar a ideia do amor universal de Deus em João 3.16 (que me parece ter um significado mais geral) é uma má ideia.

O contexto aqui tem a ver com a relação do Pai e do Filho. Jesus está alegando que os judeus estão rejeitando-o porque (na verdade) eles rejeitaram o Pai. Então, o contexto desta passagem não é uma discussão de se Deus escolheu enviar a massa da humanidade para um inferno eterno, ao mesmo tempo em que escolheu arbitrariamente salvar (por compulsão: “arrastado”) alguns. O contexto diz respeito a por que estes judeus em particular não foram atraídos a Jesus como Messias e Filho, enquanto outros foram.

E Jesus afirma aqui que é porque eles primeiramente rejeitaram o Pai e o testemunho das Escrituras. Jesus denuncia a reivindicação deles de conhecer o Pai. Ele afirma que a resistência deles ao Pai e da mensagem das Escrituras é a razão para eles não terem sido subsequentemente atraídos ao Filho. O ponto é feito repetidamente. “E o Pai, que me enviou, ele mesmo testificou de mim. Vós nunca ouvistes a sua voz, nem vistes o seu parecer” (Jo 5.37). “Examinais as Escrituras, porque vós cuidais ter nelas a vida eterna, e são elas que de mim testificam” (Jo 5.39). “Como podeis vós crer, recebendo honra uns dos outros, e não buscando a honra que vem só de Deus?” (Jo 5.44). “Porque, se vós crêsseis em Moisés, creríeis em mim; porque de mim escreveu ele. Mas, se não credes nos seus escritos, como crereis nas minhas palavras?” (Jo 5.46, 47). E, anteriormente no capítulo 5, é afirmado de modo inverso: “Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou” (Jo 5.23).

Dessa forma, o ponto é que os judeus que estão rejeitando-o estão fazendo assim porque eles primeiramente rejeitaram o Pai. Mas Jesus afirma que aqueles que reconheceram o Pai foram “trazidos” para reconhecer o Filho.

Meu correspondente está certo em dizer que ἑλκύω pode significar “arrastado.” É uma palavra mais forte do que é evidente em nossas traduções. Em Jo 21.6 e 11 ela é usada para o ato de puxar peixes em uma rede, em Jo 18.10 para o de sacar uma espada, em At 16.19 e 21.30 para o de forçadamente arrastar os apóstolos pelas ruas, e em Tg 2.6 para o de ser arrastado para o tribunal. Mas o contexto nos conta o que Jesus quer dizer. Aqueles que reconhecem o Pai e o testemunho das Escrituras são compelidos a também reconhecer o Filho.

Entretanto, a mesma palavra (ἑλκύω) é também usada em Jo 12.32, onde Jesus diz: “E eu, quando for levantado da terra, todos atrairei a mim.” Se ἑλκύω sempre significa “forçadamente arrastado”, então esta passagem teria que significar que todas as pessoas (πάντας) são salvas! Todavia, em Mateus 23.37 (pararelo em Lc 13.34), Jesus diz: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que te são enviados! quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e tu não quiseste!” Dessa forma, parece que Cristo deseja atrair para si pessoas que todavia estão indispostas a vir! E elas não vem.

Não é que Deus escolhe arbitrariamente salvar alguns por compulsão divina. Através da cruz de Cristo, ele atrai a todos. Mas, nem todos vem.

E aqui penso que chegamos ao ponto principal. A Bíblia continuamente assume a responsabilidade moral humana. Estes judeus eram responsáveis por sua rejeição do Pai e do testemunho das Escrituras. Em todo lugar é assumido que uma escolha pode ser feita, e que as pessoas podem ser responsáveis por suas escolhas. Os primeiros metodistas objetaram ao Calvinismo com bases práticas e não simplesmente teóricas. Fletcher se opôs ao que ele chamou “solafideísmo”, porque era antinomiano (“contra a lei de Deus”): ele minava a responsabilidade moral humana por um apelo à eleição incondicional de Deus para a salvação. Claramente, se você é salvo, e você não pode ser não-salvo, e é unicamente pela escolha de Deus – então não importa o que você faz. Nada depende disso. Enquanto os calvinistas clássicos nunca tiram esta conclusão, algumas pessoas estavam dispostas a seguir a lógica do Calvinismo até esta inevitável conclusão. E isto é uma das coisas que os arminianos, wesleyanos e metodistas sempre acharam objetáveis: apelar à graça para minar nossa responsabilidade de responder a Deus.

Um chamado ao arrependimento, por exemplo, supõe a capacidade de responder. E assim por diante. De muitas maneiras a Bíblia continuamente assume a capacidade e a responsabilidade de responder.

E para a pergunta do meu correspondente “Você já parou para pensar que talvez o ‘por outro lado’ de Calvino tinha a intenção de reconhecer o que a totalidade da Escritura diz sobre esta questão?”, tenho que dar um sucinto “não”.

E uma harmonização precipitada de uma escritura com princípios que eu penso ter derivado de outra é muito perigoso.

O que queremos dizer por uma “teologia que é fundamentada na própria Escritura”?

Creio que Calvino chegou as suas visões teológicas, em grande parte, por meio de Agostinho. Certamente Agostinho também apelou à Escritura como apoio de suas visões (embora ele não era nenhum estudioso bíblico), mas suas visões foram também moldadas pelas controvérsias de sua época e pelas questões pessoais que elas levantavam para ele.

Ninguém vai para as Escrituras num vácuo. A noção que alguém simplesmente espalha todos os ensinos bíblicos no chão e os organiza sistematicamente como num quebra-cabeças é um erro. Nós todos fomos influenciados por pregadores e professores bíblicos. E eu não diria que isto é uma coisa ruim – longe disso. É uma coisa boa.

Nem tudo que Agostinho ou Calvino disse está errado. Concordo com muito do que eles disseram. Ambos podem ser lidos (criticamente) com grande benefício. Mas eu também creio que algumas legítimas objeções podem e devem ser levantadas contra muito do que eles disseram.

Olhe, pessoal: nem tudo que Wesley, Fletcher, Clarke ou seus seguidores disseram está correto também.

Todavia, se lermos criticamente, podemos beneficiar-nos das percepções de todos.

Fonte: http://craigladams.com/blog/calvinism-and-john-644/

Tradução: Paulo Cesar Antunes

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